Por Guilherme Jorge da Silva
Alfred Hitchcock (1899-1980) é uma das mais notórias figuras do cinema em todos os tempos. Atendendo tão naturalmente pela alcunha de “mestre do suspense”, Alfred era, de fato, um mestre do cinema. Amado pelo público, esnobado pela crítica, a sétima arte como conhecemos jamais seria a mesma sem ele.
Diretor autor, perfeccionista brilhante e genial virtuose da imagem, o velho rotundo estava na casa dos 60 anos quando saíra de mais um sucesso estrondoso: intriga internacional (1959), estrelado por Cary Grant e Eva Marie-Saint – essa última, uma das poucas lendas dos anos dourados de Hollywood ainda viva. Era muito difícil, para não dizer impossível, um diretor se manter relevante e surpreendente na indústria por mais de três décadas consecutivas.
A verdade era uma só: Hitch estava velho. O que vinha a seguir? O que poderia ser tão perfeito quanto Um corpo que cai (1958), tão eletrizante quanto Janela indiscreta (1954) e tão provocante quanto festim diabólico (1948)?
O próprio diretor tinha dúvidas do próxima passo. Sabia que teria que ser algo impactante, não uma reinvenção, mas uma reafirmação do seu reinado absoluto no cinema. A crise inspiradora se estendeu. Tentaram empurrar uma história de um agente secreto – um tal de 007, inspirado nos livros do conterrâneo Ian Fleming. - e Alfred afirmava, sem pestanejar: “Já dirigi essa história e ela se chama intriga internacional”.
Até que um certo livro escrito por Robert Bloch parou em suas mãos. Robert é um dos mais marcantes escritores de horror norte americano do século passado. O livro narrava a história de um psicopata que mata a mãe, guarda o corpo no quarto e se veste como ela, cometendo crimes com algumas mulheres que se atrevem em parar no seu hotel de beira de estrada.
Pronto, Hitch encontrou a sua história.
Mas colocá-la no telão não foi nada trivial.
Primeiro o diretor sofreu resistência por parte dos produtores da Paramount. Para contornar a situação, hipotecou a sua casa para financiar o novo projeto e entrou em um acordo: ficaria com 1/3 da bilheteria gerada. As filmagens, para redução de gastos, ficaria nos estúdios da Universal, onde Hitchcock contaria com toda a estrutura e equipe do seu televisivo Hitchcock presents. Os estúdios aceitaram, mas o risco de ser um enorme fracasso era considerável.
Isso porque o livro era problemático em todos os sentidos. Desrespeitava, em absoluto, todo o código de conduta da indústria americana – denominado de código Hays, orientava o que era aceitável e o que era inaceitável no cinema.
O diretor estava disposto em enfrentar a censura americana.
Já na pré-produção temos uma centena de fatores inovadores e revolucionários. Os livros foram tirados de circulação para que ninguém soubesse da história. O estúdio da Universal virou um verdadeiro Bunker: ninguém, absolutamente ninguém, que não estivesse envolvido na produção, tinha acesso às instalações. Digamos que, se fosse hoje, o diretor teria trabalho dobrado para frear fotos, vídeos e vazamentos na era da internet.
Devido o conteúdo do livro e o baixo orçamento,optou-se por atores não tão famosos. O homem que estava acostumado a trabalhar com Laurence Olivier, Ingrid Bergman, James Stewart, Doris Day e toda a nata da representação cinematográfica, dirigiria um magrelo iniciante chamado Anthony Perkins, uma bela mulher chamada Janet Leigh – que num futuro próximo se casaria com Tony Curtis e seria a mãe da Jamie Lee Curtis do famoso filme Halloween (1978), mas isso fica para outro momento – e aproveitaria o contrato ainda vigente de Vera Miles.
Hitch queria chocar, mas sabia de suas limitações. Queria algo ousado, mas que o público recebesse sem grandes traumas. No fim das contas ele sabia que tinha que forçar o parafuso na medida certa. Realizou o filme em preto e branco por causa do sangue e do orçamento – não queria que o impacto ultrapassasse os limites da sensibilidade da plateia da época e, sobretudo, do bom senso. Insistiu, por muito tempo, que o filme não teria trilha sonora. Esse fator gerou uma briga entre ele e sua maior e mais importante colaboradora, sua esposa e roteirista Alma Reville. Para o diretor o foco da ruptura da suspensão emotiva tinha que vir do grito da personagem principal. Para sua esposa era impossível que o terror fosse gerado por um simples “buuu”. Convencido, chamou seu mais constante colaborador, Bernard Herrmann, para a execução da trilha sonora. O trabalho de Herrmann é monumental.
Na cena clímax o diretor leva as últimas consequências a utilização angular das câmeras, mais sugerindo do que efetivamente mostrando. Como o trabalho era preto e branco, utilizou-se calda de chocolate como o sangue que espirra no azulejo e escorre no ralo. O efeito sonoro das facadas são facadas em uma abóbora. O close-up na falecida Marion Crane surge como uma espiral em seu apático olhar sem vida. Tudo isso sob a trilha eletrizante de Bernard.
Ao terminar as filmagens, iniciou-se a maior força tarefa de marketing e propaganda até então já realizada. O diretor proibiu a entrada atrasada em sessões do filme, pedia para que não se contasse absolutamente nada para aqueles que ainda não assistiram e imensos cartazes do gordo diretor exigiam uma conduta quase celibata para uma experiência audiovisual plena.
No dia 16 de junho de 1960 estreia uma das maiores obras da história do cinema. O filme custou 800 mil dólares, gerou 60 milhões em bilheteria mundial e Alfred Hitchcock embolsou 20 milhões. Um verdadeiro milagre devido a faixa etária.
Finalmente chegamos no ponto fundamental: por que Psicose é tão importante para o cinema? Por que, mesmo 60 anos depois e com todo mundo conhecendo a cena do chuveiro e o plot twist divisor de águas, o suspense e o terror ainda funcionam? Longe de almejar uma tese científica, farei alguns apontamentos básicos.
O primeiro deles é o “fator surpresa”. Ninguém nunca chegou perto de manipular e expressar o lado negro dos seres humanos como o mestre do suspense. No filme em questão, utiliza-se de um Mcguffin (dispositivo motivador sem importância, no caso a mala de dinheiro) primoroso para explodir a sala da linearidade narrativa retirando-se brutalmente a personagem principal nos primeiros vinte minutos de filme. Ficamos à deriva, perdemos toda e qualquer referência narrativa. Como espectadores ativos, simplesmente não sabemos o que fazer ou o que vai de fato acontecer.
Segundo ponto relevante e revolucionário é a linguagem violenta e brutal. Talvez a geração “Poxa vida” (aqueles que nasceram de 1992 adiante e sabem tudo) considere, de forma anacrônica, uma exaltação exagerada. Mas tudo, absolutamente tudo que foi feito depois em termos de violência – desde a assinatura e linguagens específicas de diretores como Quentin Tarantino, Martin Scorsese, Brian de Palma, Roman Polanski até o chamado trash e cinema B – tem como ponto de partida a morte no chuveiro de Marion Crane. Psicose foi fundamental para o início do fim do censurador código Hays. Se hoje assistimos cenas de sexo sem motivação narrativa ou o banho de sangue do Tarantino, temos que agradecer Psicose.
O terceiro fator é o mais delicado deles. Como gênio da raça, a obra composta está longe de ter cenas desnecessárias ou diálogos descartáveis. A crítica ao arco final explicativo é extremamente anacrônica e equivocada, pois Alfred Hitchcock foi o primeiro diretor que navegou nas águas turbulentas da psicopatia. Era impossível e inviável, para 1960, um final sem explicações. Filmes posteriores que não necessitam explicar assassinatos cruéis e comportamentos psicóticos – como o caso de Silêncio dos inocentes (1991), Halloween (1978), Pânico (1997) e o mais recente Corra (2017) – devem a primeira exploração do assunto ao filme de 1960.
O virtuosismo do clímax, plot twist e suspensão emotiva reforçam a alcunha de hitchcock. Forma e conteúdo tem propósito, a oscilação do desdobramento e da ação é milimetricamente pensada para que fiquemos ansiosos e desconfortáveis. Um bom exemplo disso é a fuga da personagem principal com o dinheiro e a compra de um novo carro; ou o estranho comportamento regrado do famigerado psicopata Norman Bates. Hitch poderia ser vulgar e se apoiar única e exclusivamente no odioso crime de se matar uma mãe. O diretor vai além, puxando cada corda dos títeres cirurgicamente – quando descobrimos que nós, e não eles, é que somos as marionetes, já é tarde demais.
Uma quinta e última observação deve ser feita. O diretor britânico eleva os filmes de horror ao patamar de arte. O gênero, até hoje, sofre preconceito mediante uma crítica medíocre e equivocada. É um verdadeiro “cala a boca” para aqueles que não conseguem entender nem conceber o esforço artístico de um trabalho sob medida. Na verdade, Alfred Hitchcock antecipa a revolução cinematográfica dos anos 1970 com filmes como Taxi Drive (1976), O poderoso Chefão (1972), O exorcista (1973) e tantos outros; mas torna um trabalho ingrato para os seus sucessores em termos de perfeccionismos, seja na quebra de expectativas – comprovado pelos remakes infrutíferos de Psicose, com orçamento e tecnologia maior mas que não chegam nem perto do original -, seja por colocar a violência gráfica e narrativa num patamar tão elevado que muitos poucos diretores, até hoje, conseguem genuinamente surpreender sem ser vulgar, piegas ou medíocre.
O clássico Psicose está disponível na Netflix.