Veja a sentença, na íntegra:
Trata-se de AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER
aforada pelo MUNICÍPIO DE ARARAQUARA contra LUIS HENRIQUE LOPES DA SILVA, aduzindo na inicial, em síntese, que: a) o requerido está criando um grupo de empresários e simpatizantes e conclamando a população desta cidade para uma manifestação a ser realizada em frente à sede do Tiro de Guerra de Araraquara no dia 03.04.21; b) referida postura ofende as normas editadas pelo Município e também pelo Estado de São Paulo, que impuseram restrição à circulação e aglomeração de pessoas, medidas tomadas como forma de tentar conter o avanço da pandemia relacionada à COVID-19; c) requer a concessão de tutela de urgência a fim de que seja proibida a realização do ato.
É o breve relato do necessário.
Fundamento e decido.
Salutar num Estado Democrático de Direito o pleno exercício do direito à liberdade de reunião e livre expressão do pensamento, aliás garantidos na Constituição Federal como direitos e garantias fundamentais do indivíduo (art. 5º, XVI e IV, respectivamente).
Ocorre que o mesmo artigo 5º da CF/88 também garante a todos o direito à vida (caput), bem como o decorrente direito à saúde (art. 6º). Como se vê, tormentosa a atividade de exegese das normas constitucionais quando dois direitos fundamentais se apresentam, aparentemente em rota colisão. Em hipótese deste jaez, cumpre ao intérprete lançar mão do princípio da concordância prática ou da harmonização, sopesando os princípios conflitantes de modo a harmonizá-los, sem que a aplicação de um resulte no aniquilamento do outro. Nessa linha de entendimento, a doutrina insuperável de J. J. Gomes Canotilho:“o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito ou em concorrência de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”. ("in" Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1992) Analisada a hipótese fática sob esta ótica, de um lado, posiciona-se o requerido, que na companhia de outras pessoas que comungam da mesma ideologia, pretendem exercer o direito de reunião e livre manifestação do pensamento; de outro, estão posicionados os direitos à vida e à saúde de toda a coletividade de Araraquara. Evidente que a realização da manifestação na forma em que proposta pelo requerido, com inegável necessidade aglomeração de pessoas, implicaria em sério risco de agravamento do já combalido quadro da saúde pública municipal, que à custa do sacrifício de toda a população, comerciantes e empresários, vem experimentando sensível convalescimento. Atitudes que possam representar algum risco à saúde pública devem ser coibidas. Aliás, despiciendas maiores digressões acerca da importância da vida e da saúde. É nesse sentido que se deve procurar o balizamento do exercício do direito de reunião e expressão do livre pensamento, em harmonia com o direito à vida, garantindo que o requerido possa exercê-lo através das redes sociais e mídias em geral, ao menos durante a vigência das medidas de restrição impostas pelas autoridades municipais e governamentais. A propósito, a legitimidade jurídica de tais medidas vem sendo insistentemente debatida em juízo desde o ano passado, quando se deu o recrudescimento da pandemia e a consequente adoção das medidas de restrição em maior escala. Cumpre alinhar que o equacionamento da questão teve seu norte delineado, num primeiro momento, pelo C. Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672/DF, relator o Ministro Alexandre de Moraes, em 13 de outubro de 2020, que por unanimidade referendou a prevalência das restrições impostas por Governadores e Prefeitos na tentativa de conter a disseminação do vírus e o agravamento da pandemia: "CONSTITUCIONAL. PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19). RESPEITO AO FEDERALISMO. LEI FEDERAL 13.979/2020. MEDIDAS SANITÁRIAS DE CONTENÇÃO À DISSEMINAÇÃO DO VÍRUS. ISOLAMENTO SOCIAL. PROTEÇÃO À SAÚDE, SEGURANÇA SANITÁRIA E EPIDEMIOLÓGICA. COMPETÊNCIAS COMUNS E CONCORRENTES E RESPEITO AO PRINCÍPIO DA PREDOMINÂNCIA DO INTERESSE (ARTS. 23, II, 24, XII, E 25, § 1º, DA CF). COMPETÊNCIAS DOS ESTADOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DAS MEDIDAS PREVISTAS EM LEI FEDERAL. ARGUIÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. Proposta de conversão de referendo de medida cautelar em julgamento definitivo de mérito, considerando a existência de precedentes da Corte quanto à matéria de fundo e a instrução dos autos, nos termos do art. 12 da Lei 9.868/1999. 2. A gravidade da emergência causada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes, que devem ser cada vez mais valorizados, evitando-se o exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de COVID-19. 3. Em relação à saúde e assistência pública, a Constituição Federal consagra a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, II e IX, da CF), bem como prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF), permitindo aos Municípios suplementara legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, da CF); e prescrevendo ainda a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8..80/1990). 4. O Poder Executivo federal exerce o papel de ente central no planejamento e coordenação das ações governamentais em prol da saúde pública, mas nem por isso pode afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus respectivos territórios, como a imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do números de infectados e de óbitos, sem prejuízo do exame da validade formal e material da cada ato normativo pela autoridade jurisdicional competente. 5. Arguição julgada parcialmente procedente." (destaquei) Em relação à realidade local, há menos de uma semana, o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em decisão da lavra de seu eminente Presidente, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, deixou assentado: "Daí, claro está que o Estado de São Paulo, bem como o Município de Araraquara, em harmonia com suas particularidades, podem editar normas específicas a respeito do combate à pandemia, que prevalecem. E, no que toca ao município, o ato normativo está justificado pela realidade local, extremamente preocupante, conforme demonstram os dados apresentados nestes Autos." (Processo n. 2067356-46.2021.8.26.0000 - Requerente: Município de Araraquara - Requerido: Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Araraquara) Dessarte, centrado nas considerações adrede alinhavadas e em respeito à necessidade de preservação da saúde pública e do direito à vida, impõe-se no caso concreto o deferimento da medida pleiteada pelo Município de Araraquara. Ante o exposto, presentes os requisitos legais, com fundamento no artigo 300 do Código de Processo Civil, concedo a tutela de urgência pleiteada pelo requerente para o fim de determinar que o requerido se abstenha da realização da manifestação indicada na inicial, em qualquer localidade deste município, fixando para a hipótese de descumprimento a incidência de multa de R$ 200.000,00, sem prejuízo da incidência das medidas prevista nos próprios Decretos que impuseram as medidas de restrição. Cite-se. Int. Araraquara, 02 de abril de 2021. JOÃO BATTAUS NETO Juiz de Direito