O cinema é uma arte que revela múltiplos talentos. Temos figurinistas, iluminadores, editores e compositores que deixaram sua marca de excelência na sétima arte. Muitos deles ficam na poeira da história e são esquecidos ainda em vida, outros alçam seu nome para além dos astros, se fazendo tão grande quanto diretores e atores. Ennio Morricone fazia parte desse último grupo.
Colega de turma de Sergio Leone (1929-1989) na escola primária, Ennio estudaria música com Goffredo Petrassi (1904-2003) em uma Itália marcada pelo fascismo. Sua versatilidade, imaginação e virtuosismo logo encontrariam um lar: o cinema. Não seria exagero afirmar que, entre 1960 e 1990, o italiano foi o maior e mais importante compositor cinematográfico junto com John Williams. Com mais de quinhentos (sim, 500) trabalhos, influenciou a música erudita, a cultura pop e o Rock dos anos 1970. Não raro encontramos suas trilhas sonoras reutilizadas em programas como Os Simpsons e Sopranos, Django Livre e Kill Bill e influenciando artistas como Metallica, Radiohead e Hans Zimmer.
Nunca morou nos EUA. Porém, colocou Hollywood e o mundo inteiro aos seus pés.
A grande marca artística viria com a revolução nos filmes de Westerns. A dobradinha Leone-Morricone sacudiria a indústria e mostraria aos velhos cineastas americanos uma forma mais poética e épica de se contar a história de pistoleiros. O compositor, então, introduziu assovios, gaitas e coral para expressar toda a aridez do oeste. A trilogia dos dólares – Por um punhado de dólares (1964), Por uns dólares a mais (1965) e três homens em conflito (1966) – talvez seja o conjunto de filmes mais bem dirigido do gênero. De repente John Wayne era coisa do passado e Clint Eastwood era o novo brucutu que ditava as regras do Bang-Bang. Howard Hawks e John Ford nem tiveram tempo de reagir a tamanha invertida. O macarrão dominava a narrativa norte-americana.
Mas a coroação do faroeste espaguete em composição seria com Era uma vez no Oeste (1969). Se o filme em si é perfeito, Ennio transforma poeira, agressividade e tensão em notas musicais. É bruto, porém sensível, tal qual a flor de um cacto. Raras sinfonias cinematográficas chegam aos pés da dramaticidade e da execução do que se ouve nesse filme. O homem no cavalo, com a pistola em mãos, em uma cidade no meio do nada, é construído com energia e emoção. Se retirarmos tudo desse filme e ficarmos apenas com a trilha, ainda teremos um western. Como isso é possível?
Como isso é possível?
Eu não sei. De repente, o cinema se tornou pequeno para Morricone. Ele submeteu a imagem ao som. Subjugou a sétima arte, mostrando que a música é superior. E se tratando de um filme de Sergio Leone, esse é um feito e tanto.
Mas, enganam-se aqueles que acham que o italiano – falecido no último dia 6 de julho – dominou o cinema em apenas um gênero. O que dizer de Queimada! (1969), A missão (1986) e Os Intocáveis (1987)? Como um homem fora de Hollywood se atrevia a monopolizar e sintetizar a história norte americana em música? Com qual direito captura a alma do espectador ao ponto da imagem ser insignificante?
Ele reinventou o mundo.
E na reinvenção do universo, a trilha sonora de Cinema Paradiso (1988) pega a sua alma, coloca em uma mala fechada com chave e joga no meio do mar. Você se sente extasiado pela força do cinema, que faz com que alguém seja um cinéfilo, que pegue a namora e veja uma sessão, que escreva uma coluna como esta. Ele nos lembra e reafirma, definitivamente, a capacidade do cinema em se fazer e refazer em si mesmo, num vórtice colossal de mundos e realidades que tornam a vida cotidiana e patética digna de ser vivida e sonhada. É a realização do Éden dos irmãos Lumiérie, a humanidade que deu certo!
E basta! Esse mundo era muito pequeno para Ennio!
A trilogia dos dólares está disponível no telecineplay
Era uma vez no Oeste está disponível na Netflix
Queimada! e A missão Estão disponíveis no youtube
Os intocáveis está disponível na amazon prime
Cinema Paradiso está disponível na HBO